quinta-feira, 7 de maio de 2020

Sobre finalidades, adoecimento e sentido de vida

Nossa travessia continua. Saímos do lago caminhando. Andamos, andamos contemplando as altas montanhas em torno da região até que chegamos à casa de uma senhora humilde, muito amorosa, que é conhecida por todos como uma poderosa benzedeira. Dona Lucyla era seu nome e nos recebeu com grande calor humano, nos convidou até a cozinha e pôs a água do chá para ferver... (sim, espero que nesse encontro possamos tomar um pouco mais de chá, tem nos feito bem).

Foi até o quintal dos fundos de sua casa buscar umas ervas para o chá e nós a acompanhamos com o olhar dali da soleira da porta. Nos sentamos nos degraus da escada que dá para o quintal e ela, toda alegre e cativante nos diz que a doença na verdade não existe. Os sintomas que temos podem ser olhados de uma outra maneira. E que as pessoas ao invés de ficar buscando cura pros sintomas deveriam mesmo dar boas vindas a eles porque eles são os sinais da própria vida indicando os caminhos que precisamos percorrer. "Tem algo fora do lugar, precisa arrumar. Remédio pode enganar. A pessoa acha que está curada, mas logo logo volta a ficar doente de novo. A vida é caminho... não é chegada."

Olhando para o seu quintal, ela foi nos falando da inteligência das plantas, e da esperteza dos animais, e falou que os grandes alimentos de todos os seres são o ar que respiramos, a terra que nos nutre e o sol que ilumina e aquece. E que isso tudo está dentro da gente também, constantemente em trocas entre o que está dentro e o que está fora. "Quando respiramos... isso fica tão claro, não é mesmo?" Em sua compreensão simples, brotavam palavras de muita sabedoria que nos chegou a confundir:
"O mundo todo fora está dentro da gente. Esse é o grande paradoxo."

Ela me olhou nos olhos e por instantes cheguei a pensar que o mundo fora de mim que, naquele momento, incluía ela própria ali na minha frente, estava dentro de mim e que o que era outro era eu e que eu era o outro... e naquele instante me lembrei que eu, sem a conhecer, havia sonhado com Dona Lucyla naquela noite: seus olhos, sua alegria, seu tônus, sua casa, e tudo aquilo que estávamos conversando... tudo parecia um grande dèjá vu. Ela sorriu pra mim e retirou uma goiaba do pé. E eu estremeci de pensar que ela poderia ter me visitado conscientemente em sonho... tive medo quando ela partiu a goiaba e mostrou as sementes dizendo: "olha só, meu filho, agora me diz: a semente vem antes ou depois da árvore?" Confuso, comi a goiaba que estava doce.

Sentamos à mesa. Ela respirou fundo e como que olhando-nos a partir do coração, fez uma expressão terna e doce, como se visse em nós duas crianças ali em sua casa, ávidos por ouvi-la.
"Olha, vou contar uma história pra vocês. Na verdade é um conto de fadas e eu acho que ele fala tudo sobre isso que a gente está conversando.
Era uma vez duas meninas que haviam perdido o pai. Só tinha ficado a mãe. E a mãe gostava mais da filha feia e preguiçosa do que da outra que era bela e inteligente.

Vejam meus filhos, ela explicou, as histórias antigas falam sempre de nós mesmas. Sempre que tem duas irmãs... está falando de duas tendências que temos dentro da gente. Nesse caso, um lado nosso que caminha com saúde e um outro lado que vive procurando doença. Prestem atenção nessa história que vocês vão ver como que podemos escolher o nosso caminho.

A filha bela e inteligente está na beira do poço tecendo com sua roca de fiar... fere a ponta do dedo e a roca vai parar dentro do poço. Ao tentar pegar a roca ela também cai no poço e, magicamente, vai dar num lindo campo de flores... É como um reino encantado, um mundo paralelo... o mundo primordial... o mundo dos mitos...

E ali ela vai caminhado e passa primeiro pelo pão que estava pedindo que o tirassem do forno. Ela o ajuda. Depois as maçãs que queriam que sacudissem a árvore para que caíssem. Ela também as ajuda. E depois chega na casa de uma velha senhora. No princípio a menina teve muito medo. Mas depois acabou ficando com ela para ajudar. Essa velha era a Mãe Natureza do mundo mitológico. Ela lavava o chão de sua casa, e as águas que escorriam para fora geravam a chuva no mundo. Imaginem o que mais ela fazia que presidia os acontecimentos aqui da Terra...

Na companhia da velha senhora a menina ficou alguns dias. Vivia bem com ela mas começou a sentir saudades e vontade de voltar. Explicou isso à velha que concordou com sua partida. A Mãe Natureza levou-a de volta ao poço e antes, parou num portão, que do alto caiu uma chuva de ouro que deixou a menina repleta de ouro por toda a vida. Chegando em casa, o galo cantou: cocoricó, a donzela de ouro está aqui.

A viúva e a irmã ouviram sua história. Resultado: a irmã feia foi trilhar o mesmo caminho da menina bela. Mas... saiu tudo diferente, mesmo tentando fazer tudo igual. Ela vai ao poço fiar, mas não se machuca por acidente, ao contrário, finca o dedo num espinho, joga a roca no poço e se lança também. Chega no reino encantado. Mas não ajuda o pão a sair do forno, nem ajuda as maçãs a caírem da árvore... não teve medo da velha senhora porque já sabia que era boa e foi trabalhar para ela, com a intenção de receber todo aquele ouro também. Porém os dias se passaram e ela começou a ficar preguiçosa e não trabalhou direito. Aí a velha a despediu. A moça contente achou que ganharia todo aquele ouro. Mas ao invés do ouro o que caiu sobre ela foi piche. Chegando em casa o galo cantou: cocoricó, a donzela suja está aqui. O piche ficou grudado nela e não saiu por toda a vida."

Ouvimos essa história e o chá ficou pronto.
Começamos a tomar o chá mas Dona Lucyla teve que ir atender uma família que trazia uma criança doente para ser benzida. Ela foi pro quarto de reza e ficamos aqui nós dois.

O que você achou da história? Percebeu que curioso que o ouro e o piche ficaram grudados na pele? Na superfície do corpo. Uma fica saudável a vida toda. A outra, doente. Isso me faz pensar que saúde ou doença é uma questão de escolha, uma forma de ver as coisas e uma atitude diante da vida.

A primeira se integra aos processos da vida. Não força as coisas. Vive os acontecimentos como eles aparecem, não age em busca de finalidades. E nessa integração consigo mesma, aparece a integração com os ciclos naturais... o pão que precisa ser tirado do forno no tempo certo para não se queimar...  as maçãs que precisam sair da árvore no tempo da maturidade, antes que apodreçam... o contato com a personificação da Mãe Natureza, que nos causa medo de início... mas é boa para nós, se a servimos como deve. Além disso, na história a moça entra em contato com seu próprio medo. E fez dos seus sentimentos seu caminho.

A segunda vive a desconexão de si, e dos ciclos naturais. Não se percebe e não percebe seu entorno, obcecada que está com a idealização do prêmio. Age em busca de fins e não escuta os chamados do caminho. Não serve a natureza mas só objetiva os lucros que pode obter dela.
Essa história é uma bela metáfora sobre nossa travessia.

Nesse assunto de doença, nossas conversas com a Ana têm feito esse convite: todo sintoma é uma pista de um caminho para reequilibrar. Mudança de paradigma. Não se ver mais doente. O que está doente, diz Ana, é nossa relação primordial. Ora! Somos natureza, não há falta! O que há é uma ilusão de falta. Então partimos em busca de preencher essa falta ilusória. E do lugar de potência natural da conexão básica da vida, nos desconectamos e nos sentimos impotentes. Para compensar a sensação de impotência, buscamos a sua polaridade que é o poder. Poder nos mais diferentes sentidos. Não só o poder sobre o outro, o poder de dominar que já é tão denunciado. Mas o próprio poder de ajudar, de curar, poder do conhecimento, poder de ser uma pessoa melhor, a vontade de ter uma experiencia que me tire da impotência. E assim, Ana completa: criamos uma vida falsa.

Esse foi o caminho da segunda filha. Agir por finalidades é agir com uma espécie de segunda natureza. Eu vou me perdendo de mim. E aí sinto que preciso me encontrar. Então encontro algo que me dê sentido. O sentido de vida surge aqui também como uma forma de falseamento da existência. "Por que precisamos dar um sentido a vida?" E daí o reforço de uma identidade, um lugar no mundo, e criamos problemas e conflitos para alimentar todo essa auto-imagem

Diante de tudo isso, Ana continua, o que precisamos, não é resolver os problemas humanos, mas precisamos de um outro ser humano. Que não vai viver pairando acima das nuvens, vai viver as vicissitudes da vida, encontrar o jogo de atrito e conflito que vai gerar um fluxo... um caminho... e nesse caminho encontrar a diferenciação... o caminho que, ao ser percorrido, vai desvelar do dom!

Não sei o que você sente ao ouvir tudo isso. Uma pergunta que nos surge: como então parar de buscar finalidades sem que isso se torne mais uma finalidade? Ana convida a gente a observar as sensações e principiar por delas... do que você sente. Sintomas como caminho... sensações como caminho... o que está presente agora?

O passo aqui é observar. A si mesmo. O que está passando aí em você. Suas sensações corporais mesmo.

Ouvindo um amigo do grupo, o Breno, ele nos lembrou que a própria palavra cura significa "dar atenção a algo especifico" e que o arquétipo do curador significa: prestar atenção. Porque a atenção transforma. Então ao invés de buscar fora as soluções, a gente começa a observar a gente mesmo.

Meu professor de meditação diz isso o tempo todo... observe, só observe. Não julgue o que aparece, só observe as sensações, permaneça equânime diante delas... esse é o caminho para ser livre: consciência e equanimidade.

Aliás nessa nossa conversa sobre saúde me lembrei muito dele que foi fazer seu primeiro curso de meditação depois de percorrer anos a fio, países e médicos, para curar uma terrível enxaqueca. Ele, um industrial bem sucedido, já viciado em morfina chega ao centro de meditação de U Ba Khin, e diz: "Quero aprender a meditar, me disseram que o senhor pode me ensinar." E o renomado professor pergunta: "para quê você quer meditar?" "Para curar-me da enxaqueca. O senhor acha que a meditação pode ajudar?" E recebe a seguinte resposta: "pode ir embora. Curar enxaqueca não é motivo para aprender a meditar. É muito pouco." Assim começou o caminho de meu professor para fora do círculo das finalidades.

Aqui agora em nós estão as moças da história: a bela vive a experiência e inaugura um caminho. É o inicio da vida. Com suas dores e delícias. A feia é a parte da mente que reage: quer evitar as dores e repetir as delicias, são nossos padrões inconscientes. A primeira experimenta... deixa marcas em nós... e depois vamos querer repetir mas não conseguimos. A origem disso se perde no tempo. O que temos hoje é a repetição das ações que causam dor. Mas igualmente temos a chance de atualizar, de vivermos de novo uma experiência original.

Saúde é sentir!

Olha, Dona Lucyla está chegando. Está trazendo linhas e agulhas... o que será que vamos tecer juntos agora? 

4 comentários:

  1. Muito interessante sua história!E a da dona Lucyla também!

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  2. Li no dia do abraço. E a sensação ao ler o texto foi me sentir abraçada, alma aquecida. Obrigada por compartilhar!

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