domingo, 14 de fevereiro de 2021

Conversas diante do altar

"Revela-te a mim.

Quem és?

Para além desse corpo, dessa aparência, quem és? Mostra-me quem és de verdade?"


Pergunto isso e te sinto tão perto. Como se permeasses tudo. Dentro e fora de mim. Como se uma chuva de doce néctar caísse sobre mim. Sinto a pele arrepiada. É tão prazeroso. Uma respiração se faz profunda. Exalo em um suspiro de alívio como se voltasse para casa depois de haver esquecido que existia casa. Sinto paz e abertura ao intemporal.


"Mostra-me quem sou. 

 Quem sou eu?"


Pergunto isso e me sinto tão unido a ti, sinto nossa identidade. 


"Quem és tu? quem sou eu?"


Te olho.


"Quem és tu? quem sou eu?"


Te olho e uma neblina turva o olhar.


"Quem és tu? quem sou eu?"


Te olho e te sinto como as raízes profundas em minha natureza, no tempo e no espaço de onde habito. Como se fosses minha verdade ancestral, abismal.


No centro da Terra girante, um só ponto. Piso a Terra e percebo que somos, todos aqui, filhos da Terra. No centro do círculo da vida nos encontramos a todos. Caminhar para o centro é pisar no mesmo chão, chegar exatamente no mesmo ponto, de meus irmãos e irmãs. No centro, o encontro.


Encarno em um irmão. De dentro dele abro um rosário de orações. Procuro a divindade e peço: olha por mim (ou melhor, por ele, ou melhor, por nós).


"Não sou eu que oro por ti, irmão que habito, como quem enviasse uma luz daqui para aí. Como doar o que não tenho? Sou teu irmão na procura. Numa imagem de Santo Antônio doando o pão, me identifico com o faminto que recebe o pão, agradecido. Sou eu em ti que clamo pela presença da divindade em ti, em nós. Que o amor desperte. Que o amor desperte. Que o amor desperte nesse irmão."


Será essa uma forma de orar pelo outro, de ajudar?


Sempre senti prazer em orar pelas pessoas, enquanto caminhava na beira do mar. Sentia Deus presente em mim imaginando participar dessa descida do amor de Deus a seus filhos. E uma forma de oração levava a outra até que eu chegava na melhor oração que encontrei: que era agradecer a Deus pela existência de cada um em minha vida. E agradecendo, vendo as qualidades, parecia-me que boas sementes eram regadas. 


Pisando a Terra girante também me agrada dançar. Danço em louvor. Meus braços se abrem, se erguem, expõem meu coração a ti que me infunde a força da vida, Deus em movimento. Meu corpo dança e inventa o passo para fora de todo hábito.

Me agrada girar. Distribuo de dentro para fora e recebo de fora para dentro, de todas as direções. Girar me faz voar. Já na segunda volta a beleza se mostra a meus olhos. E a beleza é o voo da alma. Girar me põe no ritmo da Terra e aqui também toco meus irmãos na roda da vida. 


E sou tocado. Ah é tão bom ser tocado. Um dia, a profissão mais valorizada e estimulada no mundo vai ser a de massagista. Se bem que há toda uma arte em abrir a pele ao toque. E da pele ao abismo... ah isso leva muitos anos de prática para se libertar inteiramente o corpo. E o corpo é o céu!


"Podes me levar até o Mestre? Abrir a estrada que me leva a Ele? Mostra-me o Mestre."


Com esse pedido sinto o amor imenso. Parece possível uma espécie de transmissão: quem muito ama ensinar aqueles que pouco amam. Não exatamente ensinar, mas derramar um dom, como é da natureza de todo ensinar.


"Sim, mas não me queira para si. Ela me diz. Você está pronto a não rivalizar com o Mestre? Está pronto para ver meu amor por Ele e não querer que te ame a ti da mesma forma? Porque a beleza de meu amor poderia te confundir. Eu eu não posso amar a alguém tanto quanto a Ele. Estás pronto para olhar, não para mim, mas para onde olho?"


Lembro-me de Buda dizendo para as pessoas olharem para a lua e não para o dedo que a aponta.


Quero dizer sim.


Saio das camadas da superfície e desço mais e mais para perto do desejo original.


Digo sim.


Toco a pedra e sinto a fonte do Ser, de tudo, de Deus e do que sou. O mesmo Eu sou.


"Oh grandiosa fonte do Ser".


Finalmente olho o Mestre.


"Eu e Tu somos um."


Silencio. E amo. E sou. 


E é tudo tão rápido até que eu volte ao grande véu.


Passou. 


Ah minha vida seria um desespero sem o conhecimento de que, além do eterno amor, és a própria impermanência de tudo que não és.

2 comentários:

  1. Muito bom ler seu poema, profundamente leve, instigante, faz que se caminhe junto, crescendo, vai envolvendo. Gastei de ouvir também sua leveza. Parabéns! Pode compartilhar?

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