segunda-feira, 2 de maio de 2016

Café da manhã com moradores de rua

Meu amigo Felipe me perguntou o que fazemos Café da manhã com moradores de rua. Resolvi escrever um texto pessoal explicando.
Segunda-feira, acordo de manhã, tomo um café da manhã correndo, saio pela rua e um pouco antes das 7:30 chego na Praia do Flamengo. Bem ali debaixo de umas árvores há uma grande concentração de pessoas. Umas 100 pessoas sentadas em círculo aguardam o amanhecer e o café da manhã: café com leite, chocolate quente, café puro, iogurte, refresco, enfim, uma bebida a escolha e um pão com manteiga e uma broa de milho. Sentam-se num grande banco de concreto num formato de meia lua e a outra parte do grupo em pé ou sentada no chão mesmo. Todos aguardam o início da distribuição dos alimentos. No centro da roda, o grupo de voluntários vai chegando. Pessoas derramando bom dia, apertos de mão, sorrisos. Fazem uma oração, combinam os últimos acertos da distribuição e se voltam para o grupo grande, convidam todos a darem-se as mãos e todos, numa grande roda, lembram-se de agradecer e pedir a Deus por seus sonhos e projetos de vida e, à Divina Mãe, bênçãos que os protejam dos perigos da rua. Ao final do Pai Nosso e da Ave Maria, todos em uníssono repetem três vezes o que se tornou a senha do grupo: “Que haja paz, que haja saúde, que haja felicidade!” Então começa a distribuição dos alimentos ao som dos pássaros que circulam pelas árvores, do bom humor e das palavras de otimismo dos voluntários que despertam sorrisos e alegria junto com o saciar de uma fome que dói no corpo e no coração das pessoas que moram nas ruas do Rio de Janeiro. Nesse momento, mais pessoas foram chegando e já somos cerca de 150. Todo o alimento é distribuído e, quando dá, acontece o famoso “repeteco”... durante a distribuição algumas pessoas leem mensagens de pequenos livros, um a um, outros distribuem algumas roupas, outros dão um encaminhamento para corte gratuito de cabelo, outros colocam um pouco de ração no chão quando há algum cachorro no grupo... as pessoas vão indo embora e, ao final, faz-se uma roda de conversa e oração e, então, as pessoas sentam para receber “o passe”, uma oração individual com imposição de mãos que alguns voluntários espíritas e reikianos gostam de oferecer. De todos os trabalhos com moradores de rua que já vi, sinto que o nosso diferencial é o fato de que ao ar livre o pessoal fica mais à vontade (são mais eles mesmos) e há um clima de alegria, tranquilidade e respeito mútuo no ambiente.
Eu procuro trazer um pouco dessa harmonia com a ajuda de um violão. Gosto de tocar violão e cantar com alegria olhando nos olhos dos meus companheiros de estrada que, nesse momento da vida, passam por um momento muito complexo: ausência de casa, emprego, família, amigos, ausência de esperança e de confiança na sociedade em que vivem. A grande maioria das pessoas que vivem na rua estão lidando de maneira muito dura com uma necessidade de buscar a sobrevivência num ciclo de poucas horas... como conseguir obter a próxima refeição?... e, para mim, a grande dor é viver num clima mental de abandono, de desconfiança e violência, de solidão e pouca crença em si mesmo e num amanhã melhor. Então olho para a minha vida e para a sociedade em que vivemos, penso na Globalização, nas desigualdades que se tornaram parte do jogo, mas penso sobretudo na insensibilidade que se instala na gente. O outro se torna invisível. Falta afeto, falta contato, falta-nos o estabelecimento de vínculos calorosos, amorosos... e isso acontece em todas as classes sociais. Uma sociedade dopada, um ser humano mutilado em seu potencial amoroso. E olho para o que acontece aqui às segundas de manhã e percebo que é um espaço de resistência... olhar no olho, apertar as mãos dessas pessoas, falar de esperança, ouvir suas histórias de vida... e perceber que somos muito parecidos, e que qualquer pessoa pode um dia ter de ir viver na rua (é um acidente passível a qualquer pessoa) e contar com a precariedade dos serviços públicos que são na verdade contraproducentes para esse público (os abrigos são terríveis, a polícia os violenta e leva seus documentos para dias depois cobrar pelos documentos, um cinismo típico dos piores regimes políticos, sofrem preconceitos nos hospitais e postos de saúde e sofrem com o estigma social de mendigo, sujo, louco). Uma depressão grave, uma crise familiar (tal como uma traição amorosa), uma surto psicótico, ser vitima de um assalto longe de sua cidade, o falecimento de seus familiares, ter de fugir dos conflitos armados de comunidades, são causas que levam muitas pessoas às ruas e à estereotipia de um lugar social da mendicância e da vagabundagem. E uma vez na rua, ela os abraça, encontram vínculos solidários entre os próprios companheiros, encontram toda a precariedade nos serviços sociais que deveriam ajudá-los e entram num círculo vicioso. Os dias passam e quando se vê, já se está há anos, décadas, longe do seu destino, distante de seus propósitos de vida. Nessa hora, precisa chegar uma mão amiga. Forças vitais que as ajudem a se levantar, que pelo menos alimente a esperança em recomeçar. E, ouvindo histórias, a gente percebe que há uma construção de vida que se dá ali mesmo na rua, e que não necessariamente a melhor coisa do mundo seja “retirá-lo da rua”. Então creio que ali precisamos construir simplesmente um espaço de acolhida e respeito pelo outro como igual, um ser humano digno de existir tanto quanto eu, tanto quanto cada um de nós.
Alguns nos acusam de assistencialismo. Eu digo que é um trabalho humanitário. Ora, as pessoas precisam de assistência. Em todas as áreas da vida. O Estado não chega para essas pessoas. E quando chega, salvo raras exceções, chega com violência e não assistência. Foi da janela de sua casa em Botafogo, que Betinho viu um homem revirando o lixo em busca de comida e resolver lançar a campanha contra a fome, na década de 90. Para mim é como visitar um país devastado pela guerra, um campo de refugiados, ou mesmo cuidar de crianças que foram usadas como guerrilheiros numa guerra civil. Não posso condenar essas vítimas, preciso acolhê-las. É o mesmo sintoma de uma tragédia humanitária, uma tragédia da qual fazemos parte. Só que ela acontece dia a dia debaixo de nossos narizes, em meio a grande cidade e enquanto a vida normal acontece. No entanto, a própria vida normal é doente, neurótica, infeliz. Trabalha-se por um sistema enlouquecido e, no geral, as pessoas não são felizes em seu trabalhos, não realizam seus sentidos de vida. Então ir à rua, olhar nos olhos dessas pessoas, é para mim de um enorme sentido existencial, um sentido que pude encontrar até hoje, que me ajuda a não delirar num mundo particular de minha atual classe social, me ajuda a ter consciência da partição social de nossas cidades, me ajuda a ser mais humano, mais completo. E ali vou recolhendo histórias, vou tecendo um tipo de vínculo que creio seja para a eternidade. Se, no passado, nós guerreamos tanto, é hora de nos unirmos em causas mais amorosas. Temos a força dos antigos guerreiros adormecida em nós. Quando começarmos a utilizar essa força num sentido amoroso e inclusivo, longe dos narcóticos da sociedade de consumo, vamos ter mais tempo uns para os outros e construir um lugar mais feliz de viver. Acredito na inocência do meu coração e do coração dos voluntários que vão a esse trabalho. Nós acreditamos em coisas simples como dar bom dia, olhar nos olhos, dar as mãos e nos voltarmos juntos para Deus. Aliás, o grupo é composto por pessoas que seguem religiões diferentes, espíritas, católicos, umbandistas, evangélicos, pessoas ligadas às tradições de meditação, e mesmo pessoas sem religião alguma, todas movidas pelo amor ao ser humano. Fazer roda, rezar em conjunto, foram hábitos que fomos integrando ao trabalho por pedido das próprias pessoas que moram nas ruas e gostam de orar, e sentem nessa ajuda a presença do que para elas é expresso como presença divina. Eu pessoalmente creio nesse divino humano que somos e na presença que somos uns para os outros. Para mim é muito transformador, cada semana receber essa presença humana lá. Sinto que nosso trabalho vai se expandir, especialmente nessa possibilidade de ampliar o tempo de convívio, de troca, de escuta. Já temos o projeto de meditação e yoga, estamos pensando num projeto de esporte com futebol, enfim, depois de 10 anos é hora de crescer um pouco mais.

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