Desde criança aprendi a gostar de política. Acompanhar as
eleições, partidos, discursos, programas eleitorais... o corpo a corpo na rua,
convencer as pessoas a votar na esquerda já era uma prática que eu fazia feliz
aos 10 anos de idade. Uma inspiração dos meus pais professores, sempre indignados
com as desigualdades sociais e o desgoverno dos governos. Então, sempre fui de
oposição à estrutura política que herdamos historicamente no Brasil. Colonização,
escravidão, elitismo, coronelismo, ditadura, censura, perseguições políticas,
mídia, faziam parte do meu vocabulário desde criança.
Cresci com o sonho de mudar o mundo. Olhava a vida social ao meu redor e não me conformava com tanta desigualdade de oportunidade. O filho da empregada e eu... por que tanta diferença? E os meninos de famílias ricas? Achava tudo muito errado... e o pior era perceber o baixo grau de consciência política das pessoas. Aceitavam a realidade sem vontade de mudar... deixavam-se enganar pela mídia e deixavam-se dominar pela ideologia do opressor. Acho que desde cedo fui marcado por Paulo Freire e tentava alfabetizar as empregadas lá de casa. E eu não conseguia entender como uma pessoa pobre chamava um desempregado de vagabundo... outra coisa que me era muito estranha: para mim o discurso do Lula e do Brizola faziam tanto sentido que me arrepiavam, me faziam sonhar com as mudanças... se todos ouvissem esses discursos o mundo ia ser melhor, eu pensava... mas aí, lembro de uma empregada lá de casa me dizer: “não vou votar no Brizola não, eu entendo tudo que ele fala”. É a velha lógica do doutor, doutor é quem fala difícil, e quem fala difícil é competente. Quem fala igual ao povo é igual a mim e eu não sou ninguém. Uma autodesqualificação completa. Então uma das questões da pouca consciência política tem a ver com a falta de autoestima do povo. Num país colonizado, bom é o que vem de fora.
Eu lá com meus delírios infantis sonhava em ser presidente da república, ou um senador, deputado... as pessoas diziam que eu ia acabar fazendo direito... Sempre achei que a igualdade era algo muito natural, todos somos iguais, não deveria haver tanta desigualdade socioeconômica. E achava que meus amigos que defendiam a desigualdade por mérito eram grandes hipócritas que defendiam seus lugares privilegiados na sociedade. Isso era uma coisa óbvia para mim, e se tinha uma missão na vida reservada para mim era ajudar a fazer a revolução que implantasse a justiça social, tirando o poder das elites, tal como fizeram os revolucionários que derrubaram as aristocracias feudais. A queda da Bastilha... quantos filmes sobre a revolução francesa eu alugava na locadora! Outro tema que me fascinava era a tragédia do holocausto... a injustiça absurda e o sofrimento silencioso dos judeus nas filas geladas rumo aos campos de concentração. Assisti muitos filmes e séries sobre isso. Nós gravávamos e eu assistia várias vezes. O sofrimento do povo me tocava profundamente, a maldade e as conspirações políticas dos líderes, da propaganda nazista, e também os personagens da resistência, humanos, que tentavam salvar vidas... tudo isso me emocionava e uma das coisas que mais me tocava era: são tantos judeus diante de alguns poucos nazistas armados... por que eles não se revoltam? por que andam calados nessa fila que vai levá-los à morte? se se unissem... que política é essa que tanto os enfraqueceu e lhes tirou a capacidade de lutar? além disso, me perguntava: por que tanto ódio? Comecei a entender também que o Terror se alimenta de homens fracos, que se orgulham do pouco poder que se lhes dá. Comecei a olhar a minha volta e entender que muitos dos meus amigos e sua personalidade elitista, que toda essa mentalidade conservadora que me cerca, que me fazia parecer o único diferente, o único que pensa em direitos iguais, que todo esse povo-massa de manobra é um prato cheio para um regime nazista... e dava graças a Deus pelo Brasil ser um país onde as coisas eram mais brandas (pelo menos aos meus olhos infantis).
Um dia eu soube que o meu avô por parte de pai havia sido um fazendeiro que explorava os funcionários da fazenda através da vendinha que ele mantinha dentro da propriedade. O camponês comprava ali produtos mais caros que na cidade, anotava no caderninho e fazia dívida. Quando queria ir embora tinha muita dívida e tinha que trabalhar mais. Uma opressão esperta e malvada semelhante ao poder feudal, praticada em larga escala, coisa que descobri através das novelas do Benedito Ruy Barbosa.
Depois soube que meu avô foi à falência e então não tive muita raiva dele, mas saber disso foi duro para mim. Mas ao mesmo tempo reforçou minha vontade de transformar essa história. Eu não queria fazer o mesmo que ele. Pelo contrário, me admiravam as histórias de socialistas, pessoas generosas, cooperativistas... era esse pensamento de esquerda que eu me afinava.
Na adolescência fui muito marcado por meus primos que estudavam economia e eu queria entender melhor o que eles estavam falando... porque a conversa deles era sempre muito politizada. E aí o câmbio e os juros, o PIB, tudo aquilo tinha muito a ver com desemprego, desigualdade, crescimento, geopolítica e o cenário de dominação internacional que parecia explicar grande parte de nossa história econômica de colônia de exploração. Então ao invés de fazer história ou ciências sociais fui fazer economia, já que eu também gostava de matemática. Chegando lá encontrei colegas que pensavam parecido e tinham uma pergunta em comum: se há tanta riqueza no mundo, porque tanta pobreza? Como dividir melhor a riqueza? Minha turma foi muito boa. Acho que ainda hoje tem gente espalhada por aí que continua com a mesma vontade de mudar as coisas. Que continua se indignando com a desigualdade e a loucura do sistema que se retroalimenta da exploração dos mais fracos.
Foi no final da faculdade e no início do mestrado em Ciência Política que a espiritualidade começou a despertar em mim. Algumas pessoas defendem a tese de que quando a gente descrê da política, do mundo dos homens, começa a se interessar por religião, pelo mundo dos espíritos... pode ser, mas como não sou meu psicólogo, o que posso dizer é que o meu despertar espiritual foi uma grande descoberta, foi como achar um baú de tesouro, uma experiência muito abundante de prazer, de êxtase e de certeza na presença desse algo mais que me visitava durante as orações. E foi através do espiritismo que isso despertou e por ali eu caminhei estudando e vivenciando as emoções da fé.
Comecei a admirar Jesus, conhecer suas histórias, suas mensagens... no movimento espírita valoriza-se muito a figura de pessoas cujas histórias também me tocavam tais como Francisco de Assis, Madre Teresa e Gandhi. Então foi uma grande junção entre a minha sensibilidade humana com a questão da igualdade e todo esse movimento espiritual que também se volta para os excluídos... Jesus foi crucificado não à toa... sua mensagem abalava de tal maneira as estruturas de poder da época que não suportaram que ele continuasse vivo. O mesmo que aconteceu com Sócrates na Grécia. Suas histórias, sábios rejeitados pelo povo, parece que se repetem a cada século... e o poder continua crucificando inocentes em suas guerras e em seu genocídio silencioso que é a produção sistemática da miséria. E o povo-massa parece sempre apoiar o poder e rejeitar os sábios.
Alguns grupos espiritualistas acreditam mesmo que espiritualidade é para uma elite, que o povo vai continuar como manada,vivendo na ilusão para sempre. O Gurdjeff era um sujeito que defendia isso. Pode ser. Mas o que me encantou com Kardec foi a sua chama democrática. Abrir os segredos da espiritualidade a todas as pessoas. A mediunidade explicada, o acesso ao sagrado é igual para todos. O espiritismo é um movimento anti-institucional por natureza. Não tem sacerdotes religiosos, não tem exploração financeira, não tem dogmas... tem a pesquisa do mundo espiritual feita livremente, com inteligência. Fiquei encantado com Kardec. E quando você lê o Livro dos Espíritos encontra uma série de discussões políticas em que a visão espiritual se alinha ao uma concepção progressista: a igualdade de gênero, a igualdade social, a igualdade racial, a visão de que o homem é um ser social e é responsável pelo destino coletivo... tudo me levou a perceber que se tratava de uma espécie de socialismo espiritualista. Fiquei maravilhado em ver essa leitura em livros do professor Herculano Pires (O Reino, por exemplo), e da Cleusa Colombo, chamado Ideias Sociais Espíritas, e depois tive contato com os congressos de Peadagogia Espírita e os livros da editora Comenius e todo o movimento que a Dora Incontri faz. Então comecei a sonhar com a transformação social novamente, através dos óculos espíritas. Ou seja, a espiritualidade, longe de me afastar da política me levava de novo a ela. É dever do espírita defender o mais fraco na sociedade, mudar as instituições que fomentam a divisão, ou seja, construir uma nova institucionalidade social, não mais regidas pelo egoísmo e pela competição, não mais essa que transforma homens e natureza em mercadorias, mas uma economia centrada no amor, no trabalho recompensado por fazer sentido existencial e coletivo e na gratuidade, o que tem tudo a ver com o sonho comunista que por sua vez se inspirou lá na comunidade dos primeiros seguidores de Jesus.
Então eu continuei de esquerda, ou seja, sonhando em mudar o mundo, dividir a riqueza, ver a justiça correr como um rio caudaloso (como sonhava Luther King), mas é claro que não podia concordar com meus amigos que defendiam uma luta armada. Pois aprendi com o movimento da não-violência (Tolstoi, Gandhi, Luther King, Dom Hélder Câmara, Chico Mendes, e relativamente também o Nelson Mandela) que os meios são o princípio do fim. Ou seja, há que se ter uma coerência em todo o caminho. Se quero o mundo de amor, preciso que a mudança venha do amor. Sem violência, ainda que com resistência ativa, criativa, poética... sonhei com a revolução dos cravos em Portugal, lembrei das flores que vencem canhões na música do Geraldo Vandré que se tornou símbolo na luta contra a ditadura no Brasil... são as formas de luta que sintonizam com o cultivo do amor e da paz interior, da criação de relações amorosas. Uma radicalidade ética... longe das incoerências de tantos companheiros mesmo da esquerda que muitas vezes têm práticas que atropelam aquele que pensa diferente, em nome do poder. A intenção pode até ser boa, mas o que a espiritualidade me ensinou é que a gente sempre colhe os frutos do que planta. Então tem que ter essa coerência.
É claro que se você lê o que eu acabei de falar sobre Kardec e vai olhar o que se fala nos centros espíritas, vai ver que tem uma grande diferença. Assim como Jesus não criou o Cristianismo e seus templos de pedra (Jesus ensinou na praia, no barco, no monte, sob as árvores e na casa das pessoas), Kardec não imaginava o que iam fazer de suas pesquisas... tanta institucionalidade, uma religião criada para defender o seu discurso interno, mais uma conversão de uma religião institucional para outra religião institucional... o espírito aberto e grandioso de Kardec não tinha nada a ver com isso... ele pesquisava o fenômeno espiritual junto com pessoas de diferentes religiões e não achava que as pessoas deveriam se converter a uma outra religião. O espiritismo bem compreendido seria fonte de transformação das pessoas pois, olhando a vida sob a perspectiva de muitas reencarnações, a tendência é ter mais desapego, menos guerra pela matéria tão transitória. Sob a ótica da reencarnação, trazemos padrões muito antigos que nos trazem a um ciclo de sofrimento e dor... e é preciso sair desse padrão antigo e começar algo novo, a caridade... que é pura doação e fruição de um amor que se interessa em fazer o outro desenvolver o seu pleno potencial humano. Mas isso tudo não significava fundar uma religião, bastava um grupo de estudos.
Mas os centros espíritas estão aí, assim como as outras religiões, divulgando seu paradigma. E foi graças a esse trabalho, que também tem seu lugar, que fui beneficiado e sou muito grato por poder abrir comportas tão amplas do meu mundo interior e começar a aprender a me conectar com a fonte da vida. E eu me considero agraciado por ter encontrado um centro espírita pequeno e acolhedor, com relações de cuidado, de carinho, que acho que tem a ver com a forma como as almas superiores se cuidam, e que me apoiou em todos os meus movimentos inclusive quando fui estudar sobre o próprio espiritismo através de uma universidade pública no meu doutorado.
No entanto, os centros espíritas, em geral, enquanto pregam e estudam seu paradigma acabam, assim como todas as instituições, se esquecendo da sua relação com o mundo lá fora. Então nós vivemos, no ocidente, num sistema que é um verdadeiro genocídio silencioso e isso não é tema de pesquisa e de trabalho nos centros espíritas. É óbvio, pelo menos para mim, que quando você lê os livros de Kardec, que fala da evolução das sociedades, que fala que os homens precisam se livrar dos apegos, que condena a exploração dos outros seres humanos, que defende a igualdade social como lei divina que precisa ser reestabelecida pelos homens em sua evolução, é óbvio que o espiritismo defende uma sociedade que é incompatível com a sociedade capitalista. Mas as pessoas vão ao centro, fazem e recebem o serviço religioso e continuam passivamente em suas vidas, escravizadas pelo sistema sem perspectiva de mudança. Aí me parece que há um silenciamento covarde. Assim como o padre na cidade do interior abençoando o prefeito que é dono da grande fazenda que explora todo mundo. Mas Jesus foi expulso do templo, desagradou os poderosos... que espécie de revivescência do evangelho é essa?!
“Não, mas a gente não fala de política”. Como não?
Não acho que seja coerente com Kardec a criação de um partido, uma bancada espírita no congresso, como se os espíritas fossem mais iluminados do que outras pessoas. Mas acho coerente que haja uma cultura espírita que mantenha uma mentalidade progressista, uma consciência humanista da política. Creio haver um consenso mínimo quando se trata de tragédias humanitárias. O espiritismo condena a escravidão. Seus livros chegaram ao Brasil escravocrata e incentivou o movimento abolicionista. Começou bem. O espiritismo condena a exploração do mais fraco pelo mais poderoso. O movimento espírita é imenso no Brasil hoje. E essas pessoas não hão de ficar indignadas ante a aliança dos bancos com o poder político dos antigos coronéis que ainda dominam o nosso Congresso? Isso para dar um exemplo que é bem atual.
Do ponto de vista da pesquisa acho que minha vida percorre a mesma pergunta: como o discurso conservador consegue dominar os dominados apesar de todas as circunstâncias? Que tipo de embotamento na cabeça das pessoas que mesmo diante da obra de Kardec, continuam conservadoras na política. Se eu leio Rousseau ou Marx, e gosto, e sigo, eu me torno um revolucionário. Ora, se eu leio Kardec tem um mundo de opressões que precisam ser combatidas nesse mundo, tem uma garantia de qualidade de vida para todos que preciso defender, como uma política social universalista, por exemplo, e a gente encontra espíritas que vão ser contra um governo que queira ampliar a política social... a não ser que as pessoas não leiam Kardec. Ou a chave de leitura já está dominada por interpretações que as cegam. Como os cristãos fizeram com a Bíblia. Que transformam afirmações metafóricas em verdades científicas e verdades morais em metáforas. “Deus criou o mundo em 7 dias”, uma verdade cheia de símbolo que eles querem transformar em ciência. “Vai, vende tudo o que tem, dá aos pobres e me segue”, uma recomendação ética muito precisa... qual cristão segue literalmente a Bíblia aqui?
Ou ainda, falta mesmo é mais clareza política, entender como as coisas funcionam, perceber a perversidade sistêmica, a maldade que está por trás de pessoas elegantes, cheirosas e gentis que se mantém nas secretarias dos governos, ou na acessoria de parlamentares... e que na prática escusa estão ajudando a corromper o sistema todo. Ou, no caso da educação, a gentil e amorosa diretora de uma escola pública que tem uma prática pedagógica abominável há séculos por todos os pensadores da educação. Ou seja, falta pensamento critico. E se o espírita vai ao centro, estudar a mesma coisa toda semana, e quando ouve falar em transformação pessoal está fechado em sua neurose pensando nos seus microproblemas psicológicos... falta derrubar as paredes do centro, olhar as tragédias, as nossas sombras coletivas que vão revelar muito das nossas sombras individuais. Nossa falta de amor, de afeto, de liberdade já que vivemos em uma sociedade absolutamente repressora.
O ser humano é belo, rico em potencial de maravilhamento com a vida e com o mundo. O brilho do olhar de um ser humano é a hierofania que se revela todas as manhãs diante de cada um de nós, na pessoa com quem tomamos café da manhã (aprendi hoje isso com Pedro Toro, na aula de biodanza)... no olhar daqueles com quem almoçamos. Olhar o outro e ver a presença do mistério. Se encantar, com o assombro da eterna novidade da existência, dos passarinhos que vêm bebericar o néctar das flores do jardim. Deus não está restrito aos templos... está também no ritual da vida cotidiana, está no raio de sol, no brilho da lua, e em toda parte, é o todo, do qual sou todo também. A experiência do sagrado vivifica, ressuscita. Ela é a experiência suprema do amor que nos faz tremer de medo ante o inesperado. O amor é o que mais nos fascina e o que mais nos atemoriza. E é fonte de nossas maiores alegrias e de nossas maiores dores. Assim é o sagrado, porque o amor é sagrado. Ter coragem e olhar com olhos de amor, encantar-se com a vida. Olhar, olhar, olhar, contemplação... (contém “placer”, em espanhol), ter prazer em simplesmente ver a vida, e sentir-se vivo. Creio que Jesus era um ser com olhar amoroso que via a presença do mistério e, por isso, se fazia presença... ao ser humano é feito o convite de segui-lo nesse gesto de amorosidade, de olhar a vida com esses outros olhos... olhos de curiosa magia ante o novo.
Espiritualidade, para mim, hoje, que fui muito influenciado, nos últimos anos, por diversas práticas de meditação, por vivências corporais como a biodanza, tem a ver com presença no agora... com um ir além da experiência linear do tempo e tocar, no instante mesmo - um instante poético – a beleza, a transcendência, e é uma experiência de encanto e de vida, uma experiência de eternidade. Ficaria eternamente abraçado a essa pessoa que amo... o tempo parece não passar. E olho o tronco das árvores e o brilho do sol nas folhas... e eles me transportam para o transcendente e amoroso espaço do agora eterno. E o amor que começo a sentir... e então olho para a humanidade e vejo tantos horrores... e consigo ver nisso tudo uma tremenda falta de amor. Desde bebês... falta amor, cuidado, afeto, presença (porque são tantas presenças ausentes que se detectam nos consultórios de psicanálise ao longo da vida). E tem um potencial imenso dentro da gente, mas a gente aprendeu a reprimir os potenciais para viver nessa sociedade que aplaude o desamor... que incentiva só a apreensão intelectual das coisas, deixando de lado o afetivo, o lúdico... o bebê olha a árvore, a flor e o beija-flor... o que ele vê? se eu não estou enganado ele vê a presença de Deus em beleza. Aí, vem um adulto que está seco em sua espiritualidade e se apressa em dar os nomes: árvore, flor, passarinho... e diz as cores, orgulhoso por estar ensinando... mas o essencial que a criança está vendo, que já está invisível ao adulto... e que não tem nome... com o tempo a criança vai substituindo o essencial pelo nome dado pelo adulto (é o que Platão quis dizer na alegoria da caverna) e vai repetindo o comportamento dos adultos... e perde a essência. E uma sociedade doente como a nossa, adoece as crianças... e depois vende remédio para transtorno de comportamento.
Mas se falta resgatar essa fonte perdida do amor, dos mistérios, desses conteúdos que reprimimos ao longo da vida... há que se ter uma política contracultural que nos ajude a florescer esse instinto originário do humano, que é gregário, que é amoroso com a espécie, que inclui e que sente prazer em estar com o outro. A enfermidade instalada em nós, nos faz querer distância do outro, o que gera mais e mais invisibilidade, insensibilidade e carência afetiva por todos os lados e guerra, competição, individualismo, isso é a nossa doença, é importante que se diga, porque o status quo naturaliza a enfermidade e criminaliza os poetas... Que ferramenta temos à disposição para realizar essa alquimia?
Eu pessoalmente fui buscar fora dos centros espíritas. Para mim, foi importante essa busca fora. Porque do ponto de vista da corporeidade, a reprodução da repressão que vigora na sociedade também acontece nas instituições espíritas. O corpo como lugar do pecado e todas as fantasias de culpa religiosa associada ao prazer também estão presentes nos centros, salvo exceções com quem me interessa dialogar. E negar o corpo é negar a vida, que é negar a potência máxima da manifestação de Deus no cosmos.
Não estou defendendo que os centros espíritas se tornem centros holísticos de cura, com terapias corporais. Podem continuar sendo locais de divulgação da doutrina espírita. Mas quero compartilhar que há, no mundo, uma série de práticas saudáveis, e que são espiritualizantes, e conheço muitos espíritas de mente aberta que estão nessas buscas (yoga, biodanza, meditação, danças sagradas,rituais xamânicos, artes marciais, etc), que vão além da dimensão intelectual e que acho que são importantes para essa alquimia humana, para o desabrochar da percepção do sagrado e da vivência do amor, por remexer nos conteúdos reprimidos da sombra nossa de cada dia. E que o estudo intelectual dá consciência, mas não traz o fogo da transformação, que os momentos difíceis da vida trazem, mas que podem também ser acessados por práticas terapêuticas sérias, que o ocidente conheceu depois de Kardec. O século XX mostrou que a Razão não dá conta da inteireza humana e a sombra das guerras e das atrocidades humanas mostrou o que ocorre quando o ser humano não ilumina a sua inteireza... O homem que se esforça para domar suas más inclinações... normalmente fica mais neurótico... imagino que Kardec hoje concordaria com as descobertas das ciências psíquicas e daria outra definição sobre o verdadeiro espírita.
Acho que uma pessoa que frequenta muito um espaço só, que
repete o mesmo discurso e estuda a mesma coisa... acho que ela está com medo da
vida, com medo do contato com o diferente, com medo de se descobrir diferente
também. E digo isso porque a patologia do comportamento religioso, o fanatismo,
se alimenta desse tipo de prática, ensimesmada, sem diálogo, sem abertura de
horizontes e, principalmente, sem contato com o outro. Isso é, no mínimo,
alienante. Um lugar de conforto... tal como uma gaiola encarpetada.
Fico feliz ao constatar que "suas meninas" estão te revigorando e que você continua reverdejando, apesar do emburrecimento acadêmico tão gritante em nossos dias.
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