Rio de
Janeiro, depois de um tempo envolvido com o tráfico de drogas no Morro dos
Prazeres, Santa Teresa, ele foi preso e recebia visitas de sua mãe.
Matheus foi
meu aluno por anos no projeto chamado Escola de Valores. Nos encontrávamos aos
sábados de manhã no Aterro do Flamengo. Na época, moravam no casarão da Tavares
Bastos. Era uma família que além dele, mais seis irmãos moravam com a mãe e o
padrasto num só quartinho, com uma só cama de casal. O banheiro coletivo ficava
no final do corredor do segundo andar do casarão. Ali viviam com muitas outras famílias também apertadas em seus quartinhos. Muitas histórias
me vêm à lembrança agora que recebo a notícia de sua morte.
Estou muito
triste. Fizemos uma boa amizade. Demos boas risadas juntos. Não foi fácil, mas
nosso grupo de trabalho conquistou essa criançada, com música, histórias,
brincadeiras e muitos abraços. Ainda assim, permanecia o sentimento de que
nosso trabalho estava incompleto porque a agressividade era grande entre eles.
Mais velho
entre os irmãos, entre suas histórias estava o dia em que apartou a briga do
padrasto com sua mãe, pegou a faca e ameaçou matá-lo se ele continuasse a bater
nela.
Matheus não
ia bem na escola. Expulso de uma delas, o comportamento era difícil. Mas eu
sabia que por trás disso estava o fato de que tinha dificuldade com a leitura,
mesmo aos 12, 13 anos.
A família
resolveu melhorar de vida, a mãe se separou, saíram do casarão, e foram para
uma casinha bem pequena no Morro dos Prazeres. Perdemos, aos poucos, o
contato. A irmã de Matheus teve um filho e lá viviam também sob o olhar
preocupado da mãe que trabalhava o dia inteiro no asfalto e via os filhos
soltando pipa e andando com o pessoal da bandidagem.
Agora
Matheus se vai e a minha tristeza se derrama em lágrimas de impotência.
Fizemos
pouco? O que será dos outros irmãos? Quem será o próximo?
Nessas horas
de morte me lembro do queridíssimo Dom Helder Câmara.
Ele tinha as
palavras certas para cada momento.
Com que
cores vou pintar a minha tristeza?
Silencio e sinto que meu coração triste abriga frutos de compaixão e revolta.
E antes de
dar asas à minha revolta prefiro fazer perguntas, refletir.
Quando
pensei em compartilhar minha dor com minha família silenciei. Eles não
conseguem entender. Parecem tão enfeitiçados pelas justificativas do sistema
que o máximo que conseguiriam seria culpar a mãe por ter tido tantos filhos.
Acho que eu precisaria gritar com minha raiva: respeitem a minha dor!
Lembro de
Dom Helder quando dizia em meio ao regime militar: “quando dou comida aos pobres me chamam de santo,
quando pergunto por que há pobreza me chamam de comunista.”
Fico me
perguntando um monte de coisas. Sobre os sistemas. O sistema escolar, o sistema
prisional. Como esse menino passa pelos sistemas e os sistemas fracassam?
Onde estão
os professores e inspetores, coordenadores e diretores das escolas que tinham
problema com a conduta do Matheus? O que será que sentem agora? Será que se
perguntam, como eu, o que eles fizeram ou deixaram de fazer? Fico me
perguntando como o menino entra na escola, não dá certo, e, apesar dos esforços
das pessoas, sai do sistema escolar sem ter dado certo? Não seria o sistema
escolar, em essência, um erro? O fracasso escolar é do Matheus ou da escola?
E o que
dizer do sistema prisional? Se um menino de vinte anos é preso, qual o
objetivo? Quem o recebe lá? Quais as metas reeducativas? Se todo mundo
fracassou... a escola fracassou, a família fracassou, a igreja, eu, se todos
fracassamos... aí ele chega na prisão. A prisão deveria ter a melhor equipe de educadores,
não? Entende o raciocínio? Deveríamos pegar sujeitos com o talento de um Pestalozzi
e pagar a ele o melhor salário do mundo para ajudar na educação desse menino.
Mais
perguntas. Como é possível uma família de 9 pessoas dividir um quarto com uma
cama de casal? Na Cidade Maravilhosa! Que tipo de experiência essas crianças
estão tendo num espaço tão apertado? Qual noção de espaço, de limite,
privacidade, sociabilidade se constrói aí?
Por que
vivemos numa sociedade tão desigual?
Essa família
se desenraizou de sua terra natal num êxodo para a grande cidade. Esse capítulo
já é antigo. Por que concentramos as condições de vida nas grandes cidades? Já
estou me perguntando sobre a lógica das cidades, que tem a ver com a lógica dos
lucros num sistema pouco inteligente porque concentra. Lembra: o Brasil é um país
com altas taxas de lucros, mas pouco desenvolvido. Será que não tem a ver com o tipo
de concentração das atividades e dos lucros? E aí como fica a vida das pessoas?
Ou se mora longe demais do trabalho, ou se mora em casebres. Em ambos os casos
a qualidade de vida está comprometida.
Outra pergunta não tão óbvia: por que a humanidade inventou armas de fogo? Um instrumento exclusivamente fabricado para tirar a vida de outro ser humano e dar lucro ao fabricante. Por que as pessoas usam drogas? Por que são os pobres e as crianças que morrem na cadeia produtiva da droga? E ainda me pergunto: se a Unidade de Polícia Pacificadora tinha chegado ao Morro dos Prazeres, e a mãe do Matheus estava toda feliz por ter ido morar numa comunidade pacificada, por que ainda havia tráfico de drogas lá?
Outra pergunta não tão óbvia: por que a humanidade inventou armas de fogo? Um instrumento exclusivamente fabricado para tirar a vida de outro ser humano e dar lucro ao fabricante. Por que as pessoas usam drogas? Por que são os pobres e as crianças que morrem na cadeia produtiva da droga? E ainda me pergunto: se a Unidade de Polícia Pacificadora tinha chegado ao Morro dos Prazeres, e a mãe do Matheus estava toda feliz por ter ido morar numa comunidade pacificada, por que ainda havia tráfico de drogas lá?
Mais perguntas:
por que essa mãe tem tantos filhos? E por que há tanta carência afetiva na
criação desses e de tantos outros filhos das gerações? Ouvi certa vez um
psicólogo sugerindo que uma causa pela qual as meninas da favela têm filhos aos
14 anos é o fato de poder mostrar para todo mundo (e para si mesma) que foi
amada por alguém. Andar com o barrigão é poder contrariar a baixa auto estima e
dizer: alguém me quis.
Afetividade,
sexualidade, amor... por que era tão difícil a Matheus, seus irmãos e seus
amigos, serem tocados em seus corpos, serem abraçados? Qual o medo do afeto?
A morte do
meu querido Matheus me faz pensar tanta coisa.
Me lembro da
gente junto. Caminhando pelas ruas, as vezes que ele foi na
minha casa, o sorriso sincero e bonito. Forte, seu apelido era Tourinho, nome que ganhou na capoeira. Aliás, a capoeira
também passou.
O que ocorre
na trajetória de vida desses meninos que nada parece prender muito sua atenção?
Nada faz com que fiquem, nada os agarram. Nada preenche o sentido de vida e dá
aquela “Eureka! achei algo legal para fazer da minha vida". E aí o tráfico agarra.
Por que
parece que há uma condenação ao sofrimento?
Podemos
pensar em vidas passadas, em entender essa vida como a continuidade e consequência
das ações anteriores. Ainda assim me vêm perguntas: quando será que poderemos
construir uma sociedade humana capaz de acolher e encaminhar os
desencaminhados? Quando vamos oferecer caminhos ao invés de condenar?
Durante a vida, Matheus foi tão condenado...
Seus irmãos
estarão condenados ao mesmo destino?
O que pode
ser feito meu Deus?
Termino essa reflexão com mais perguntas do que respostas e a sensação de um fracasso como educador. Matheus não achou lugar nesse mundo. Este nosso mundo não ofereceu lugar a Matheus. Matheus não é mau. Ele é bom. Carinhoso, sorriso sincero, amigo leal. Não encontrou lugar aqui. Este nosso mundo não oferece lugar a todos. E aí eles vão, de sistema em sistema, sendo excluídos até a morte. Este é o nosso mundo.
Muito triste com a morte do Matheus. Obrigada pelo seu esclarecinento. Paz para ele na nova caminhada.. paz para a mãe dele. Que Deus tenha piedade. Paz
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ResponderExcluirPenso o mesmo!! Mas me chateio em ver que estes questionamentos deveriam estar em pauta em discussões abertas com toda comunidade, de como e o que poderemos, de fato, fazer pra dar as respostas a estes questionamentos. Triste!
ResponderExcluirVocê não me conhece... Triste demais em ler o seu relato... relato poético e tão triste, tão lamentador pelos olhos de uma educação alheia à causas... trabalho há 20 anos numa favela, hoje, mais conhecida como comunidade, numa EM, mudaram o nome e o perfil continua o mesmo ou pior. Vi muitos se perderem mas, não tive, nesses 20 anos, o saber de um aluno se perder para sempre, dessa forma. Vi os pais se indo, pelas balas perdidas, pelas vinganças, pelas doenças físicas... Pela doença da alma, do coração, como o Matheus, esse seu aluno e de muitos outros, não vi e não quero sentir... já doeu em mim a sua dor... obrigada pelo relato! Que mundo mais controverso, sem parâmetros, sem amor!
ResponderExcluirMe identifiquei quando disse que não poderia desabafar com sua família, pensei: Que bom! Não sou só eu que sou vista como um ET pelos meus, e imediatamente pensei: Que ruim! Isso mostra que somos uma imensa minoria no sistema. É triste sim o fim do Matheus, mas você não pode pensar que fracassou, você é apenas uma parte do sistema, a parte boa! Essa música vai dizer o que penso de você:
ResponderExcluirVai tua vida
Teu caminho é de paz e amor
A tua vida
É uma linda canção de amor
Abre os teus braços e canta
A última esperança
A esperança divina
De amar em paz
Se todos fossem
Iguais a você
Que maravilha viver
Uma canção pelo ar
Uma mulher a cantar
Uma cidade a cantar, a sorrir, a cantar, a pedir
A beleza de amar
Como o sol, como a flor, como a luz
Amar sem mentir, nem sofrer
Existiria a verdade
Verdade que ninguém vê
Se todos fossem no mundo iguais a você
Sinta-se abraçado.
"Matheus não achou lugar nesse mundo. Este nosso mundo não ofereceu lugar a Matheus. Matheus não é mau. Ele é bom. Carinhoso, sorriso sincero, amigo leal. Não encontrou lugar aqui. Este nosso mundo não oferece lugar a todos. E aí eles vão, de sistema em sistema, sendo excluídos até a morte. Este é o nosso mundo." Desculpe André, não encontrei palavras melhores que as suas para falar do Matheus... Espero que ele esteja melhor agora, ele merece um mundo melhor. Paz e Bem.
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