"Como pode ser gostar de alguém / E esse alguém não ser seu?"
Nas férias abro meu amor e minha intuição à turma que virá no próximo semestre.
Antes de saber quem serão as alunas, abro-me a um planejamento subjetivo do curso. Qual será o percurso da turma de arte? Vou lendo, vou sentindo, vou colocando umas cartas na manga.
Nesse ano me vinha um pensamento que ouvi de que em congressos de psicanálise há momentos de relato de percurso de análise em que uma pessoa conta a sua história pessoal.
Contar minha vida a partir dos meus erros, minhas fragilidades, meu processo de autoconhecimento até aqui. Coloquei essa carta na manga. Estava pronto para contar tudo e responder a toda e qualquer pergunta de minha vida pessoal. (No semestre anterior, na disciplina optativa, em que temos ênfase em yoga, recebi uma pergunta que adorei: "professor, o que você mais gosta e o que você menos gosta em você?")
Quando o ano começou eu adorei ver os rostos conhecidos das meninas. Tínhamos vivido excelentes experiências na turma de corpo do primeiro período. 2 anos e meio depois elas estavam comigo outra vez. Sabia que ia ser bom.
Um dia combinamos de fazer a vivência do autorretrato, com colagens. A turma ficou fazendo (não consegui fazer o meu porque estava providenciando materiais e apoiando na impressão de suas fotos). Os trabalhos estavam ficando lindos (um grupo realmente talentoso) e uma das meninas me segredou que era seu aniversário. Então pedi pra ela escolher um música para tocar de fundo. Ela escolheu Amado, da Vanessa da Mata. A canção começa com a frase da epígrafe desse texto. E no meio da música eu lancei a pergunta: "vocês acham que as pessoas costumam desejar justamente os amores impossíveis?"
Cada uma começou a falar, e enquanto continuavam em suas colagens de seus autorretratos a conversa foi ficando animada, a aniversariante lembrou da frase de Schopenhauer: "A vida é uma constante oscilação entre a ânsia de ter e o tédio de possuir".
Até que surgiu a pergunta: "professor, o senhor já traiu?"
Elas não sabiam que eu estava esperando uma oportunidade para contar minha historia. Vão saber agora que estão lendo esse texto. Por sinal, no fim da aula recebi o pedido de fazer um relato deste encontro tão caloroso que tivemos. Porque foi nesse dia também que mostrei pra elas meu blog (este aqui). Todo feliz contei da minha primeira postagem que foi algo do meu nascimento como professor. E depois li a última postagem, que foi sobre a descoberta da minha filha da alegria de escrever um diário e, consequentemente, da alegria de um pai perceber a alegria de sua filha com a escrita.
Eu contei a elas um monte de coisas da minha vida pessoal. Falei: "antes de contar se traí ou não, acho que preciso que vocês saibam um pouco de como foi minha historia", contei das minha inibições na infância e adolescência, se espantaram ao saber a idade de meu primeiro beijo, contei das minhas inseguranças sexuais e tive que explicar os fantasmas do fracasso sexual que povoam a mente dos meninos, os males do machismo sobre os meninos, as expectativas de performance, etc. contei também dos primeiros ensaios de namoro e dos relacionamentos longos que tive.
Minha fala ia sendo entrecortada por comentários delas. O ambiente estava muito descontraído porque à medida que ia recebendo julgamentos, ora eu os acolhia, ora eu devolvia como uma forma de provocação. A coisa virou uma espécie de ringue: 10 mulheres contra 1 homem. Evidentemente, eu fui ao chão várias vezes.
Por um momento nos perguntamos se iríamos discutir a questão de "uma pessoa" que trai, ou de "um homem" que trai. Isso faria alguma diferença. E pode ser que todos tenhamos ao longo do bate papo refletido sobre nossas histórias e questões nos relacionamentos, e que a lição de um possa ter servido para inspirar a vida de outras. Mas o tom do momento acabou prevalecendo: todas contra um.
Ao final fiquei feliz com uma certa catarse coletiva em que aquelas mulheres puderam descarregar seus ressentimentos acumulados por uma sociedade extremamente machista. Por todas as violências concretas e sutis que sofreram e ainda sofrem. É bom que possam saber bater nos homens, eu pensei em alguns momentos. É bom que haja sororidade, concluímos ao final.
No entanto, pelas tendências em tomar partido no momento da escuta, em ter logo um julgamento, fiquei pensando no ambiente em que elas cresceram e possivelmente ainda vivem. Se as ideias de certo e errado, bom e mau, são todas muito bem definidas, deve haver algum custo para se encaixar nos padrões da moralidade de seu grupo social, como se fosse possível a um ser humano alcançar a luz sem reconhecer a existência de sombras.
E o meu plano inicial que imaginei nas férias: contar minha historia para exemplificar as complexidades da subjetividade humana, a noção de que a vida não segue uma linha reta, as ilusões e o processos demorados de amadurecimento, a dura jornada de autoconhecimento, para onde foi tudo isso?
Depois da aula encarei a questão: será que eu sou mesmo um ser humano ruim? Se estou num relacionamento e me apaixono por uma outra pessoa, isso fala do meu caráter? O que é certo e o que é errado fazer? Contar, não contar? Viver a paixão, freá-la, esquecê-la? Como contar? Por que as pessoas não contam? Esse é um tema que merece aprofundamentos.
Na aula lançamos a provocação: as pessoas questionam o caráter de quem se apaixona, mas ninguém parece questionar o modelo hegemônico da monogamia. Conversei com Marianna sobre isso e ela me escreveu: "A expectativa hegemônica, compulsória de exclusividade sexual não permite a espontaneidade da relação amorosa, inibe desde o princípio e constrange a possibilidade de sinceridade na comunicação. Como é que a pessoa que ouve "eu só tenho olhos para você, você é tudo para mim, tudo que um homem precisa eu tenho em casa", vai conseguir, numa boa, tranquilamente, ouvir "eu estou ficando a fim de outra pessoa, eu quero estar mais vezes com ela"? O que se ouve é "essa relação já não serve mais, vamos terminar". A monogamia não permite meios termos, nuances, confluências."
Conversar, conversar, conversar... A verdade como construção relacional.
"Em termos relacionais, a verdade não nos espera pronta, ela está por fazer. Relacionar-se com sinceridade não significa ser obrigado a dizer tudo o que pensa ou faz, mas de criar condições pelas quais possamos ser e mostrar aquilo que somos, incluindo as contradições. Então, a sinceridade não é apenas a comunicação das certezas, mas fundamentalmente a conversa cuidadosa sobre as incertezas."
Poema em linhas tortas: é pelo jeito de errar que a gente ama
Mais do que quando você alcançou as notas, te admirei mesmo quando você continuou cantando mesmo percebendo a própria desafinação
E mesmo tropeçando, continuou dançando
E não parou de dizer gaguejando
Quando não deu tanto mérito à vida em linha reta
E quando riu de si sendo ridículo e absurdo
Quando perdeu todas as rodadas, mas não desistiu de jogar
Há uma certa coragem que os erros têm que nenhum acerto jamais terá
E é sem atribuir tanta importância à possibilidade de falhar
Sem atribuir tanta magnitude ao que os outros irão pensar se a gente tentar e não conseguir é que encontramos alguma autenticidade
Farta de deuses e semideuses,
eu me apaixono é por gente.
Foto: poema de Sérgio Vaz, no livro Flores da Batalha