Queridos amigos,
eis um link da reportagem que fizeram sobre Renato
Rocha.
Nosso companheiro esteve algumas vezes entre nós, no café de
segunda.
Ali, ao contrário da Record, respeitamos seu tempo, demos o violão na
mão dele. Ele não tocou, ficou olhando, fez diversos comentários sobre a marca,
sobre as cordas, etc. E o deixamos onde ele estava. Nossa metodologia é: só
podemos ajudar quando há uma demanda. Oferecemos o alimento, o olhar, o toque, a
amizade, o papo, o violão. Mas não podemos entrar e mudar a vida de ninguém. As
pessoas são livres.
Ao ver a reportagem senti muitas emoções diferentes.
Mas fico com uma reflexão que gostaria de compartilhar.
Gostaria de ver isso escrito por um psicólogo, alguem que estudou
melhor a mente humana.
Mas do pouco que li e vivencio nesse
assunto, faço umas perguntas:
O que é ser normal?
O que a sociedade espera do comportamento humano como algo
normal?
O que significa morar na rua?
Nesses anos de contato com a população de rua posso dizer que a
grande maioria passou por traumas, crises financeiras, familiares e psicológicas
que as conduziram a esse destino.
É leviano dizer que as pessoas moram na rua por opção.
Temos uma responsabilidade social por esse contingente imenso de
pessoas que, se pudessem, escolheriam outra situação para viver.
Por isso precisamos rever as nossas perspectivas de inclusão:
moradia, educação, saúde, transporte (estamos no terreno das escolhas coletivas,
ou mais tecnicamente falando, das políticas públicas)
É preciso, como sociedade, oferecer oportunidades.
E elas não existem. O que há, é muito ruim. Os abrigos são
hiper-lotados, o tratamento é pouco digno. E a solução da questão tem no abrigo
só o começo. é preciso muito mais.
Mas todos os dias escolhemos manter as pessoas revirando e comendo
comida do lixo.
"Esse é o nosso mundo..."
Olhando a reportagem com sensibilidade começamos a perceber que
estamos longe de compreender o problema.
A estética da reportagem, o tom da reporter, toda essa estratégia de
lucrar com o sofrimento do nosso companheiro mostra que estamos longe de
compreender as pessoas, a dinâmica do psiquismo humano.
Ela ficou o tempo todo forçando situações esperando que saissem
lágrimas dos olhos do seu entrevistado. É isso que esses programas
fazem. Esses entrevistadores que se aproximam num dia, tentam explorar a dor da
pessoa, para que o público chore junto, sofra com o "coitadinho" que está
sofrendo, a emoção do reencontro. E tentam um final feliz, para dizer: olha como
a nossa equipe fez o bem...
Mas o fato desmente a teoria.
O que se esperava do "comportamento normal" não foi encontrado em
nenhum momento durante a reportagem.
A fala, o pensamento do Renato é absolutamente fragmentado. Sua mente
tem uma dinâmica própria, assim como suas emoções. É claro que ele se emociona e
pensa, mas faz isso de um jeito que a "normalidade social" não compreende. Suas
frases são curtas, opera por imagens, ideias soltas, conversar com ele é uma
viagem, ele vai de um assunto a outro e assim por diante. Se vocês repararem, a
TV não mostra ele falando por muito tempo. Só pega umas falas soltas, porque é
assim que ele conversa. Mas isso não é entendido como adequado para a TV. Então
a TV falou por ele e o usou, como sempre faz. E o mundo continua sem chance de
compreendê-lo como ele é.
Foi tempo em que os diferentes eram trancados nos hospícios, "para o
bem deles".
Foi-se o tempo da camisa de força.
Hoje ele pode decidir.
Que irônico ver o Renato dizendo que queria ir embora, contrariando
todo o tom da reportagem e das nossas emoções que iam sendo conduzidas pela
força poderosa da mídia.
Ele prefere ficar na rua, no momento.
A ordem, para Renato, é outra.
O normal não existe.
Ele desmente o nosso paradigma do que é normal.
Por que morar na rua é contra a ordem? Por que é contra as normas
sociais? Será que os políticos que inventaram o choque de ordem já se
perguntaram isso?
Se você for a Índia, verá pessoas que fizeram a opção pela pobreza,
pela rua, numa caminhada de libertação de um mundo ordinário, tão ordenado
quanto bárbaro. Um elefante andando pela rua não seria estranho lá (ouvi essa
reflexão de Jorge Munoz, um senhor que tem anos de trabalho com população de
rua)
É falsa a nossa ilusão de civilização, de ordem, de
normalidade.
Foi contra isso que o Legião Urbana cantou em tantas canções: é tudo
isso em vão.
E é isso que denunciam todos os artistas, poetas, profetas e loucos
de todos os tempos.
A normalidade do mundo é uma falsidade.
Pobre reportagem que não entende nada. Se confundiu e confundiu tudo,
invertendo o sentido da poesia.
E pobres de nós que não sabemos incluir.
Continuamos no paradigma da normalidade, nós, normóticos, na
tentativa desesperada de dar sentido a um mundo que não tem um sentido dogmático
como querem os totalitaristas de todo espectro político.
Vivam os poetas, loucos, profetas, artistas de todos os
tempos.
Não são eles que precisam de tratamento. Nem de cruzes, venenos ou
fogueiras.
Precisamos de um mundo novo.
paz, paz, paz!