terça-feira, 31 de agosto de 2010

Discurso de Platão sobre o Amor


No diálogo de Platão, "O Banquete", Sócrates faz um belo discurso sobre o amor. Diz ele que o ouviu de uma mulher de Mantinéia, chamada Diotima. Eis na íntegra:

Quando nasceu Afrodite, banqueteavam-se os deuses e entre os demais se encontrava também o filho de Prudência, Recurso.

Depois que acabaram de jantar, veio para esmolar do festim a Pobreza, e ficou pela porta.

Ora, Recurso embriagado com o néctar - pois vinho ainda não havia - penetrou o jardim de Zeus e, pesado, adormeceu.

Pobreza então, tramando em sua falta de recurso engendrar um filho de Recurso, deita-se a seu lado e pronto concebe o Amor.

Eis porque ficou companheiro e servo de Afrodite o Amor, gerado em seu natalício ao mesmo tempo que por natureza amante do belo, porque também Afrodite é bela. E por ser o Amor filho de Recurso e Pobreza foi esta a condição em que ele ficou.

Primeramente ele é sempre pobre, e longe está de ser delicado e belo, como a maioria imagina, mas é duro, seco, decalço e sem lar, sempre por terra e sem forro, deitando-se ao desabrigo, as portas e nos caminhos, porque tem a natureza da mãe, sempre convivendo com a necessidade.

Segundo o pai, porém, ele é insidioso com o que é belo e bom, e corajoso, decidido e enérgico, caçador terrível, sempre a tecer maquinações, ávido de sabedoria e cheio de recursos, a filosofar por toda a vida, terrível, mago, feiticeiro, sofista: e nem imortal é a sua natureza, nem mortal, e no mesmo dia ora ele germina e vive quando enriquece; ora morre e de novo ressuscita, graças a natureza do pai; e o que consegue sempre lhe escapa, de modo que o Amor nem empobrece nem enriquece, assim como também está sempre no meio da sabedoria e da ignorância.

terça-feira, 24 de agosto de 2010

A paz e os meus inimigos


Há um belíssimo ponto de encontro entre o texto mais popular dos cristãos e o texto mais popular dos hindus.

Trata-se do Salmo 23 de Davi e o Bagavad Gita.

O primeiro é o famoso salmo dirigido ao pastor, rogando-lhe que guie o discípulo pelos campos verdes e águas tranquilas. O segundo mostra o diálogo do discípulo em busca do caminho de vida com equilíbrio que leve a paz.

Confiança e entrega absoluta a Deus, busca de paz... eis a essência de ambos os textos.

Interessante que ambos fazem referência aos inimigos.

Todo Bagavad Gita gira em torno do diálogo do guerreiro Arjuna com o Senhor Krisna, antes do início da batalha. Arjuna está confuso porque terá de enfrentar amigos e familiares que estão no exército inimigo. Então, inspirado pela sabedoria de Krisna entende que precisa cumprir seu dever (darma) sem esperar os frutos da ação. Agir sem apego, eis o caminho da felicidade!

No Bagavad Gita, capítulo 1 texto 23, Arjuna diz ao Senhor Krisna: "Deixe-me ver os que vieram lutar aqui, desejando comprazer o malévolo filho de Dhrtarastra."

E no texto seguinte Arjuna é chamado gudakesa que significa aquele que conquista o sono.

Meditando um pouco sobre esses trechos, percebemos a relação entre olhar os inimigos da batalha e a conquista do sono tranquilo, a paz interior.

Ao fazer uma leitura espiritual, percebe-se que todo esse poema é um belíssimo tratado de autoconhecimento. Olhar os inimigos é olhar para dentro de si, os inimigos internos. Encarar de frente as suas questões íntimas, não recuar, agir como um guerreiro e enfrentar seus fantasmas interiores. Eis a fonte da paz, expressa naquele que conquista o sono tranquilo.

Porque o sono é onde se expressam as mazelas escondidas de cada um. E aquele que não quer se olhar de dia, acaba se vendo assustadoramente enquanto dorme.

Olhar os inimigos no campo de batalha é olhar para dentro de si mesmo, se conhecer (sem indulgência nem culpa) e conquistar a paz interior.

Agora sim pude entender o Salmo da ovelha para o pastor: "Preparas uma mesa para mim na presença dos meus inimigos."
E só assim a ovelha terá o refrigério da alma em pastos verdejantes e águas tranquilas.
Na verdade eu sempre me senti muito bem ao ouvir ou recitar esse Salmo, mas confesso que tinha um incômodo com esse verso, pois não o compreendia. Agora, graças a leitura do Bagavad Gita, pude entendê-lo. (Esses são frutos doces do diálogo inter-religioso).

Busque a paz! Encontre os seus inimigos e seja feliz!

sábado, 21 de agosto de 2010

Inviável e certo.

Na terça-feira, dia 17 de agosto, o Fórum sobre População de Rua de Angra dos Reis se reuniu mais uma vez.
Foi um encontro de muito aprendizado e uma oportunidade incrível de ouvir companheiros que vivem ou viveram a situação de morar na rua. Foi também um renascer de esperanças. Perseverar nas lutas.
Ao final do encontro, quando todos estavam amarrados pelos fios da rede que criamos ao longo da manhã, foi lido um belíssimo texto de Dom Pedro Casaldáliga (foto abaixo):

Dá-nos a tua paz!

Dá-nos, Senhor, aquela Paz estranha
que brota em plena luta
como uma flor de fogo:
que rompe em plena noite
como um canto escondido;
que chega em plena morte
como o beijo esperado.

Dá-nos a Paz dos que caminham sempre,
nus de toda vantagem,
vestidos pelo vento da esperança.

Aquela Paz dos pobres,
vencedores do medo.
Aquela Paz dos livres,
amarrados à vida.

A Paz que se partilha na igualdade,
como a água e a Hóstia.
Aquela Paz do Reino, que vem vindo.
Inviável e certo.

Dá-nos a Paz, a outra Paz, a Tua,
Tu que és nossa Paz!

extraído do livro: "Orações da caminhada" de D. Pedro Casaldáliga

quarta-feira, 18 de agosto de 2010

Mergulho em...


Ontem a noite.
Li um trecho do Gandhi sobre a oração.
Estou lendo seu livro: A roca e o calmo pensar.
E lia e orava.
Literatura prática. Lemos e fazemos.

Até que uma frase: "Uma prece não precisa de palavras."
Sim, prece silenciosa. Súplica interna.
Então a frase seguinte: "Ela é, em si mesma, independente de qualquer esforço sensorial".
Aí me quebrei.
Até então minha experiência de oração dependia de sensações: leveza, arrepios, sensação de calma, emoções de amor... e mais intensas quanto maior o esforço interior.
Não estive errado, mas esta frase promoveu a retirada de todo pensamento e toda sensação, e todo esforço.
Mergulhei no vazio e no silêncio.
Foi. (não posso dizer que foi bom)
Rápido. Instante. Mergulho em... (não posso dizer em mim, não posso dizer em Deus, não posso dizer no Todo, na Paz, não, não posso dizer) (inominável).
Foi.
Fui dormir.

domingo, 8 de agosto de 2010

Diálogo com os católicos: o Mistério da Eucaristia


Dialogar com o Catolicismo.
Nas últimas semanas tenho tido um diálogo com meus irmãos católicos. Uma amiga me relatou a beleza do ritual católico a seus olhos...
Muito renovador o diálogo inter-religioso. Vejo uma outra face de Deus... Uma face que me estava escondida desde a infância. Só agora, por exemplo, começo a entender o teatro (no bom sentido!) ao qual todos participamos no ritual da missa.

Confesso que tenho dedicado mais tempo ao estudo dos caminhos da mística oriental.

Mas algo tem me levado a fazer as pazes com o ritual católico. E creio que ontem atingi uma experiência irredutível (É na irredutibilidade da experiência do outro que posso ter uma autêntica experiência de Deus, num terreno fora da minha tradição. É só aí, nessa experiência em outra igreja, com a linguagem - intraduzível - da outra igreja, com a mística da outra igreja é que posso dizer que tive uma experiência de fé, e o início do diálogo inter-religioso no interior do meu coração).

Hoje posso dizer que compreendo um pouco mais a fé do católicos.
Claro que não vou entrar no terreno da Trindade, um terreno espinhoso, senão para os hindus, ao menos para espíritas e muçulmanos.

Fora teólogos racionalistas(!), que mais despertam divergências com a agudeza de seus espinhos.

Porque a semente caiu em terra boa(!), a terra do meu coração aberto a experiência de Deus, ali, no que há de mais sagrado aos cristãos, no mistério maior, no sacramento da eucaristia.

Igreja das Carmelitas, Pouso Alegre, MG. Fim de tarde. Bela música. Alegre coro feminino. Vozes entonado cânticos de amor ao Supremo Senhor Jesus, esposo de Teresa. O amor estava no ar... Em suas vozes, as mulheres senão que amavam, ao menos buscavam amar aquele que muito amou.

Os fiéis estavam mais unidos, havia no ar uma emoção estranha (o espaço fica curvo, as dimensões se cruzam, o ar ganha um peso). Era a preparação para a transformação do pão em corpo e do vinho em sangue que haveria de unir em solidariedade todas as pessoas do mundo. O pão. O pão da vida. O pão repartido. Um gesto único. Um gesto de união. Ali me senti unido a todos aqueles que dependem do alimento da terra. Percebi que era mais um, que não estava só, que estava em comunhão. Belo momento em que eu meditava: o mistério da fé. É isso! É isso que o católico chama mistério. Irredutível a interpretações.

E dali as emoções se confundiram. Ondas de tristeza. Tomai e comei, isto é o meu corpo que será entregue por vós. Tomai e bebei, este é o cálice do meu sangue que será derramado por vós. Foi o que ouvi do concentrado sacerdote.
Por que nós permitimos que Ele fosse entregue e assassinado? Quantas vezes matamos a verdade e o amor ao longo da história? Por que havemos de fraquejar e permitir que o bem seja derrotado? E por que beber e comer esse sangue e corpo de nossa própria desdita? Sinto que a contradição é inerente a esse mistério.

E eis que surge o cântico de esperança, de ressurreição. Sinto-me amado! Ele é maior que nossas fraquezas. E haverá de nos reerguer, do arrependimento, para a conquista, enfim, do Reino da Paz, a Civilização do Amor, que virá.

Em poucos minutos, vivi toda essa epopéia da humanidade. No laboratório de emoções do meu coração, ali estava toda a nossa História. E o símbolo do cordeiro, que um dia acarinhei, manso... falando alto em meu coração. Desperto com o Pai-Nosso em uníssono e forte. Uma história com um final feliz.

Obrigado irmãs, amigos, católicos.
Desejo que vocês sejam bons católicos.
Que vivam essa dimensão de fé, de mistério, de amor, de plenitude de emoções nesse belo teatro da missa, para que voltem ao teatro do mundo a ser instrumento de partilha de pão e amor a todas as pessoas que tem fome e sede. Serão instrumentos do nosso Senhor.

Volto as paredes seguras do meu Centro Espírita, enriquecido com o vosso pão. Graças a esse bendito diálogo.

Só espero que meus irmãos espíritas não me excomunguem por eu ter comungado com vocês.

E espero que vocês não me anatematizem por eu não ter ficado com vocês.
Juntos permitiremos que Ele faça do mundo um lugar belo e de Paz.

A Paz de Cristo esteja com você!

segunda-feira, 2 de agosto de 2010

A democracia como valor no trabalho social


Diz Gandhi: "O fim é o meio."

Quando fazemos um trabalho social partimos de valores, princípios, dos quais não podemos abrir mão. Um deles é o da democracia, que tem a ver com o respeito a dignidade humana, que tem a ver com o processo de decisões participativo, que tem a ver com humildade em nossos posicionamentos: todos podem ter grandes idéias.

Quando se trata em respeitar a dignidade da pessoa humana precisamos ser radicais.

Não é porque somos democráticos que vamos tolerar tudo. O desrespeito é intolerável.

Em nosso trabalho na rua, temos lutado para trabalhar assim. É trabalhoso. Envolve uma série de impedimentos de nossa cultura.

Ao dar um simples café da manhã para moradores de rua podemos simplesmente dar o café, ou podemos estabelecer uma relação cujos valores democráticos estejam presentes. Aí educamos para a cidadania, para o tempo do direito e da dignidade humanas. Tempo este que estamos ajudando a chegar logo.

Lembro quando começamos, há 4 anos...

Quem está rua tem uma enorme dificuldade em aceitar regras. Então a distribuição era muito tumultuada. Aí abríamos o bate-papo e os companheiros faziam sugestões. "Só recebe quem está sentado" - fizemos assim. "Use uma ficha para cada pessoa, tipo senha" - também implementamos essas idéias. Funcionou! O grupo fica mais calmo, o ambiente mais agradável. Claro que sempre tem um que chega e não quer saber de regras, mas não é que a democracia é um processo pedagógico de compreensão e respeito as regras?

Temos aprendido muito nesses anos.

Quando erramos, aí é que dá certo. Porque é aí que nos esforçamos para inovar os métodos de trabalho. O espírito democrático exige a abertura a natureza dinâmica da interação humana, senão vira ditadura.

Hoje aconteceu de novo: erramos. Quem bom! Vamos melhorar...

Manhã nublada: frio e fome. Éramos cerca de 70 pessoas (hoje o grupo estava menor), uns 40 interessados em receber roupas novas. Seguimos o conselho dos companheiros da roda de bate-papo e começamos a usar a ficha para distribuir a doação de roupas. As pessoas não entendiam, ficavam em torno das roupas e nós querendo que as pessoas sentassem e esperassem ser chamadas pelo número da ficha. Não estava fluindo. Quase apanhei. Aí tivemos que intervir, exigindo que todos sentassem para poder continuar. É a hora do uso da força (estamos aprendendo que democracia exige força, liderança e disciplina).

Precisavam confiar no grupo. Saber que não tinha ninguém passando a frente deles. Aí, depois de muito tempo e alguns desentendimentos, funcionou.

Ao final, todos avaliamos. Assim é melhor. Todos concordaram.

E assim vamos em frente.

Sinto, a cada dia, que temos feito algo mais do que distribuir roupas e alimentos. Temos trabalhado valores democráticos.

Um dia, as pessoas não vão mais se acotovelar para obter as coisas. Não haverá mais bens jogados avanço. Todos terão direito. Haverá paz. Haverá organização e justiça. Poderemos confiar nos processos de decisão, haverá transparência nas regras, os líderes seguirão princípios éticos radicais (sem jeitinhos e incoerências). Até lá vamos começando nos pequenos espaços de socialização. O fim é o meio: se sonhamos com uma sociedade democrática, sejamos democráticos hoje.

Se fosse só dar comida e roupa teríamos parado há muito tempo. Seria fácil trazer umas roupas, um lanche, deixar o pessoal se batendo para obter o pouco que nos sobra e sair satisfeito por ter ajudado a alguém, mesmo deixando um sentimento de injustiça no coração de todos os que não receberam.

Somos em média 130 pessoas toda semana. Vamos persistir no bem, nos valores democráticos e no respeito aos olhos de cada um. Quem quiser tumultuar, vai se afastar naturalmente. Mas quem quiser sinceramente servir, fazer sua parte, vai permanecer. O bem é mais forte.

Nosso trabalho é aprender a conviver. E seguimos na esperança de que um dia, a Terra inteira vai conviver melhor.

paz!