segunda-feira, 31 de outubro de 2016

Eu defendo a compaixão

Queridos, hoje estive no café da manhã e meu coração mais uma vez se contorceu de dor com uma mistura de sentimentos vendo a situação de cerca de 200 companheiros vivendo na rua. Por que tanta gente sem casa, tendo que percorrer a cidade em busca de alimento para sobreviver? Hoje muitos vieram me pedir ajuda para tirar segunda via de documentação, outros vieram pedir ajuda para um dentista, outro para um oftalmologista pois a fila para o atendimento na saúde pública é tão grande que ele que está com dor de dente hoje vai ter que esperar mais de um mês para o tratamento. Vejo tantos jovens se formando em medicina, em odontologia... tanto conhecimento, tanta vontade de trabalhar... por que o atendimento é tão demorado e muitas vezes inviável para essas pessoas? Teve uma hora que fomos doar roupa e um monte de gente se acotovelando para um peça de roupa... olhei para aqueles homens se acotovelando... era um perfil parecido... depois alguns me chamaram no canto e disseram: aquela roupa ali vai ser vendida no brechó e você sabe pra que os caras querem dinheiro... Me pergunto por que as pessoas se drogam tanto? Nossas sociedades modernas tem no mínimo 70% da população consumindo alteradores de consciência... e olha que não estou sendo radical e incluindo a televisão aqui... estou falando de crack, maconha, álcool... uma sociedade onde as pessoas tem um aplicativo para fugir da polícia não é uma sociedade saudável, nem ética... Depois chegou um homem totalmente transtornado, criou uma grande confusão provocando briga, pegou pedras para jogar nas pessoas e eu tive que ir lá acalmá-lo... conversa vai conversa vem... fui sentindo que temos ali um caso de transtorno mental grave sem tratamento... tantos profissionais da psiquiatria, tantos psicólogos formados com vontade de trabalhar... por que as pessoas ficam na rua sem tratamento adequado e ainda correndo o risco de serem presas como se fossem criminosos? Aliás me pergunto quantos presos não precisariam, na verdade, de tratamento? Lidar com a frustração é tão difícil para todos nós... às vezes olhando tanta dor no mundo, e tanta inconsciência... eu acho que eu estou por um triz de pirar também... me sinto tão impotente em fazer algo por essas pessoas. As coisas estão tão erradas... e parece que ninguém vê. Claro que no meio de tanto sofrimento, a gente vê um monte de coisa bonita também. Na nossa aula de yoga, uma de nossas alunas falou da mudança que está tendo em seu temperamento: que está "boba consigo mesma", que antes era agressiva e agora não briga mais com as pessoas. Todo mundo devia fazer yoga ou outras terapias para terem o mesmo efeito, né? Pelo menos isso a gente está conseguindo oferecer gratuitamente. Mas as sombras ainda são muitas e meu coração se enche de compaixão. Acho que compaixão é o amor misturado com o desejo de justiça. Quero que as pessoas sejam felizes. Olho o homem com pedras na mão e gostaria que ele encontrasse tratamento, ao invés de prisão... mas sei que a opinião pública que elege os políticos e mantem um pensamento conservador vitorioso no país não consegue ver assim... e que a opinião pública, a mesma que escolheu Barrabás ao invés de Jesus, quer jogar pedras no homem com pedras na mão. Mas meu coração dói diante do sofrimento psíquico do homem que segura as pedras na mão... e ao mesmo tempo dói só de pensar no que as pessoas pensam desse homem e que ninguém vê ali um doente mental precisando de ajuda, mas um criminoso que merece morrer. Eu defendo a compaixão... por isso ajudo a chegar o pão a quem tem fome. Eu defendo a caridade, por isso quero que chegue a moradia, o tratamento de saúde, o fim do linchamento, da execução sumária e da tortura, porque as pessoas precisam ser tratadas e não odiadas.... eu sou pelo amor e por isso estou na rua em contato com os mais pobres dos pobres da cidade, os que moram nas ruas, os sem ninguém, o sintoma da doença social que vivemos na cidade. Eu sou pela paz e por isso me pergunto por quanto tempo nós vamos aceitar que os dirigentes do Estado (esse que tem o poder de construir casas, de fazer funcionar o sistema de saúde, de organizar melhor para que não haja tanto excesso de comida na mesma cidade que tem tanta fome) continuem não cumprindo o seu dever. Meu coração está doído demais. Mas é a compaixão que me faz perseverar, apesar da dor alucinante do faminto que me xinga por eu lhe entregar o pão, apesar da ignorância do senso comum político que diz que o Brasil é subdesenvolvido porque pobre não gosta de trabalhar... ouço isso e sinto o ódio dessas pessoas e busco a fé... é preciso muita fé para tentar trazer luz sob o céu nublado do sofrimento humano... meus mestres foram mortos por serem bons... eu persisto! E acredito que assim a gente faz a diferença... vamos em frente! Aqui tem o texto da Política Nacional para a Inclusão da População em Situação de Rua... o texto é lindo! Foi uma vitória a sua aprovação a nível nacional. Sonho que seja colocado em prática... quem sabe... pelo Brasil a fora... esses novos prefeitos eleitos...
http://www.mpsp.mp.br/portal/page/portal/cao_civel/acoes_afirmativas/Pol.Nacional-Morad.Rua.pdf

domingo, 30 de outubro de 2016

(In)Exato

Voltando para casa irritado e frustrado após uma conversa com uma pessoa mergulhada no senso comum político, desabafei para minha mãe:
- Acho que escolhi a profissão errada.
- Como assim? - Ela quis saber.
- Eu não devia estar no campo das ciências humanas, as pessoas não respeitam seus anos de estudo, elas são cheias de opiniões erradas sobre o mundo social, não levam em conta o saber da história em seu pensamento, são dominadas pela ideologia dominante. Isso não aconteceria com um cientista natural, as pessoas perguntam para saber algo de um astrônomo, por exemplo... e jamais ficariam argumentando que é o sol e a lua que giram ao redor da terra.
E depois de um silêncio, eu terminei meu desabafo:
- Eu devia ter feito exatas.
E então minha mãe retrucou sabiamente:
- Mas você não é exato...

Minha mãe tem 69 anos e quando não está reclamando das dores do corpo, tem essas tiradas sábias e exatas para manter a auto-estima do filho.

quinta-feira, 27 de outubro de 2016

Do fogo eleitoral à fogueira do conselho


"O dom da fala foi concedido aos homens não para que enganassem uns aos outros, mas sim para que expressassem seus pensamentos uns aos outros." Santo Agostinho.

Em tempo eleitorais, venho refletindo muito sobre que tipo de mecanismo democrático tem mais sintonia com os novos tempos da evolução humana.

Venho assistindo a disputa eleitoral, e mesmo tomando partido por um candidato, não posso deixar de me sentir triste com o processo democrático que me parece muito ultrapassado para valores que hoje já compartilhamos.

Nessas últimas semanas fiquei perplexo com a grande inconsciência das pessoas e de como a propaganda eleitoral afeta as opiniões de forma a deixar as pessoas menos reflexivas e mais preconceituosas.

Senti-me imensamente desanimado com a falta de sensibilidade com relação ao sofrimento das pessoas mais pobres e vítimas da crueldade e violência sistêmica que vivemos. Conversar com as pessoas é como "cair na real" e ver que o espírito de compaixão anda muito distante quando se pensa no todo.

Vi-me decepcionado também com a falta de motivação das pessoas para a participação e em acreditar que elas podem "fazer a diferença".

E para piorar meu estado de ânimo, senti-me altamente afetado com o clima de disputa que aumenta a emoção do ódio na cidade.

Entretanto, em meio a essa crise íntima, buscando alguma luz, eis que fui presenteado, só nessa semana, com três encontros em que falamos e fizemos um ritual conhecido como "bastão da fala". O que me fez pensar sobre: "afinal, o que significa todo esse processo eleitoral e qual democracia precisamos buscar?"

A inspiração do "bastão da fala" vem dos povos nativos da América do Norte e está concretamente presente nas formas de organização política das pequenas comunidades ecológicas atuais.

"Quando precisam tomar decisões que afeta a nação, os povos nativos das Américas recorrem a um ritual que pode durar toda a madrugada. Os membros desse conselho que se reúne em torno da fogueira são pessoas que já viveram muitos anos, sempre demonstrando lealdade, bravura, compaixão e altruísmo, além de ser um bom ouvinte, um conselheiro discreto, um juiz justo e um honrado membro da tribo.

Em cada tribo, todos reverenciam os anciãos com grande respeito por terem dirigido os caminhos da nação com desprendimento, coragem e sabedoria. E então, nos momentos de difíceis decisões, eles se reúnem enrolados em seus cobertores em volta da fogueira para passar a noite: é a Fogueira do Conselho.

E ali evocam a presença de todo o parentesco dos homens. Os espíritos dos antepassados, guias e conselheiros espirituais do povo, bem como o avô sol, a avó lua, as estrelas... e os animais, as plantas, as nuvens, as pedras... todos igualmente sagrados, assim como o vento, a terra mãe, o pai céu... E todo esse conjunto de seres, é colocado dentro do Cachimbo e a fumaça do Cachimbo conduz o espírito de todos os parentes para que participem e inspirem o Conselho.

Todos os pontos de vista são ouvidos. E ali cada um fala segurando o bastão que dá voz a quem o segura. Cada um escuta atentamente. Há silêncio reflexivo entre as falas. Os problemas pessoais são deixados de fora do círculo. Todo talento que possa ser útil para resolver as questões é trazido para dentro. Qualquer discórdia entre os membros do conselho é solucionada enterrando-se o Fornilho antes de fumar o Cachimbo. Ao final de cada reunião é realizada uma prece de gratidão, e muitas vezes um banquete festivo.

O objetivo é sempre manter a Paz. E quem convoca um conselho deve estar sempre pronto para acatar as decisões do mesmo. Quando um mau comportamento de alguém é levado ao conselho, admitir o erro e corrigi-lo ajuda a forjar o caráter e fortalece a Nação. A pessoa não passa vergonha, não é humilhada, e toda vez que tenta sinceramente corrigir seu erro, isso é visto como um ato de coragem.

Só quando todo o povo está bem, um indivíduo pode estar bem.

Quando essas diretrizes forem seguidas por todos os povos, os Filhos da Terra conseguirão, finalmente, romper os grilhões da desigualdade e da ditadura."

(citação livre do livro: "As Cartas do Caminho Sagrado" de Jamie Sams)

Viver a realidade dessa fala sincera e dessa sensibilidade para a escuta do outro, faz relativizar o que chamamos democracia hoje.

Não. Não é democracia. É disputa de poder. Democracia é outra coisa. E são os índios, em sua profunda conexão com o sagrado e a irmandade dos povos viventes, que têm algo a ensinar...

E assim, depois dessa reflexão e das práticas de bastão da fala entre estudantes e amigos, seguirei até domingo com a sensação de estar com a alma curada... tenho clareza de que o candidato que escolhi compartilha valores democráticos que se aproximam deste ideal, mas também tenho clareza da distância que há entre esse processo que estamos vivendo e o que sonhamos... já sei por quais caminhos devo investir minhas energias para ajudar a construir a socio-cosmo-cracia do futuro.

Vamos em frente. Há muito a ser feito.