segunda-feira, 2 de abril de 2012

Não é normal morar na rua?

Queridos amigos,
eis um link da reportagem que fizeram sobre Renato Rocha.
Nosso companheiro esteve algumas vezes entre nós, no café de segunda.
Ali, ao contrário da Record, respeitamos seu tempo, demos o violão na mão dele. Ele não tocou, ficou olhando, fez diversos comentários sobre a marca, sobre as cordas, etc. E o deixamos onde ele estava. Nossa metodologia é: só podemos ajudar quando há uma demanda. Oferecemos o alimento, o olhar, o toque, a amizade, o papo, o violão. Mas não podemos entrar e mudar a vida de ninguém. As pessoas são livres.
Ao ver a reportagem senti muitas emoções diferentes.
Mas fico com uma reflexão que gostaria de compartilhar.
Gostaria de ver isso escrito por um psicólogo, alguem que estudou melhor a mente humana.
Mas do pouco que li e vivencio nesse assunto, faço umas perguntas:
O que é ser normal?
O que a sociedade espera do comportamento humano como algo normal?
O que significa morar na rua?
Nesses anos de contato com a população de rua posso dizer que a grande maioria passou por traumas, crises financeiras, familiares e psicológicas que as conduziram a esse destino.
É leviano dizer que as pessoas moram na rua por opção.
Temos uma responsabilidade social por esse contingente imenso de pessoas que, se pudessem, escolheriam outra situação para viver.
Por isso precisamos rever as nossas perspectivas de inclusão: moradia, educação, saúde, transporte (estamos no terreno das escolhas coletivas, ou mais tecnicamente falando, das políticas públicas)
É preciso, como sociedade, oferecer oportunidades.
E elas não existem. O que há, é muito ruim. Os abrigos são hiper-lotados, o tratamento é pouco digno. E a solução da questão tem no abrigo só o começo. é preciso muito mais.
Mas todos os dias escolhemos manter as pessoas revirando e comendo comida do lixo.
"Esse é o nosso mundo..."
Olhando a reportagem com sensibilidade começamos a perceber que estamos longe de compreender o problema.
A estética da reportagem, o tom da reporter, toda essa estratégia de lucrar com o sofrimento do nosso companheiro mostra que estamos longe de compreender as pessoas, a dinâmica do psiquismo humano.
Ela ficou o tempo todo forçando situações esperando que saissem lágrimas dos olhos do seu entrevistado. É isso que esses programas fazem. Esses entrevistadores que se aproximam num dia, tentam explorar a dor da pessoa, para que o público chore junto, sofra com o "coitadinho" que está sofrendo, a emoção do reencontro. E tentam um final feliz, para dizer: olha como a nossa equipe fez o bem...
Mas o fato desmente a teoria.
O que se esperava do "comportamento normal" não foi encontrado em nenhum momento durante a reportagem.
A fala, o pensamento do Renato é absolutamente fragmentado. Sua mente tem uma dinâmica própria, assim como suas emoções. É claro que ele se emociona e pensa, mas faz isso de um jeito que a "normalidade social" não compreende. Suas frases são curtas, opera por imagens, ideias soltas, conversar com ele é uma viagem, ele vai de um assunto a outro e assim por diante. Se vocês repararem, a TV não mostra ele falando por muito tempo. Só pega umas falas soltas, porque é assim que ele conversa. Mas isso não é entendido como adequado para a TV. Então a TV falou por ele e o usou, como sempre faz. E o mundo continua sem chance de compreendê-lo como ele é.
Foi tempo em que os diferentes eram trancados nos hospícios, "para o bem deles".
Foi-se o tempo da camisa de força.
Hoje ele pode decidir.
Que irônico ver o Renato dizendo que queria ir embora, contrariando todo o tom da reportagem e das nossas emoções que iam sendo conduzidas pela força poderosa da mídia.
Ele prefere ficar na rua, no momento.
A ordem, para Renato, é outra.
O normal não existe.
Ele desmente o nosso paradigma do que é normal.
Por que morar na rua é contra a ordem? Por que é contra as normas sociais? Será que os políticos que inventaram o choque de ordem já se perguntaram isso?
Se você for a Índia, verá pessoas que fizeram a opção pela pobreza, pela rua, numa caminhada de libertação de um mundo ordinário, tão ordenado quanto bárbaro. Um elefante andando pela rua não seria estranho lá (ouvi essa reflexão de Jorge Munoz, um senhor que tem anos de trabalho com população de rua)
É falsa a nossa ilusão de civilização, de ordem, de normalidade.
Foi contra isso que o Legião Urbana cantou em tantas canções: é tudo isso em vão.
E é isso que denunciam todos os artistas, poetas, profetas e loucos de todos os tempos.
A normalidade do mundo é uma falsidade.
Pobre reportagem que não entende nada. Se confundiu e confundiu tudo, invertendo o sentido da poesia.
E pobres de nós que não sabemos incluir.
Continuamos no paradigma da normalidade, nós, normóticos, na tentativa desesperada de dar sentido a um mundo que não tem um sentido dogmático como querem os totalitaristas de todo espectro político.
Vivam os poetas, loucos, profetas, artistas de todos os tempos.
Não são eles que precisam de tratamento. Nem de cruzes, venenos ou fogueiras.
Precisamos de um mundo novo.
paz, paz, paz!